segunda-feira, 29 de julho de 2019

Popularização da internet pelo celular limita habilidades para o mercado de trabalho

A ONU reconhece o acesso à internet como um direito humano, mas as estatísticas mostram que, no Brasil, esse é um privilégio concentrado nos mais ricos. Um estudo divulgado em junho pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) aponta que mais de 90% das pessoas de classes A e B estão na rede, enquanto nas faixas D e E esse percentual é de apenas 42%. Mas, mesmo entre os mais pobres conectados, a renda tem impacto direto na forma de uso e no tipo de conteúdo consumido. Muita gente só tem acesso à rede pelo celular e não desenvolve completamente as habilidades das novas tecnologias digitais, sem nem saber operar um computador.
O trabalho do Ipea foi baseado em dados das pesquisas TIC Domicílio 2017 e TIC Cultura, ambas realizadas pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br). Winston Oyadomari, coordenador das pesquisas no Cetic.br, explica que a inclusão digital no país só avança com a popularização dos smartphones, o que não é acompanhado pela qualidade no acesso, com o desenvolvimento de habilidades.
— Para se pensar na redução de desigualdades, no acesso a bons empregos, temos de olhar para quais são os usos pela lógica dos dispositivos — diz Oyadomari. — Hoje, 49% dos usuários acessam a internet apenas pelo celular. E existem habilidades, principalmente em atividades profissionais, que só podem ser desenvolvidas no computador.
Foi essa a descoberta do estudante Lucas Bitar, de 20 anos, ao participar de um curso de empoderamento digital oferecido pela ONG Recode, na Redes da Maré, no Complexo da Maré. Até então, sua experiência com internet se restringia a fuxicar a vida de celebridades e conversar em redes sociais pelo celular.
— No primeiro dia do curso, a professora pediu para a gente ligar o computador, e eu não sabia como — lembra. — O curso expandiu meus horizontes. Aprendi a fazer pesquisas e usar ferramentas de produtividade, e logo depois consegui um emprego. Moro no Complexo da Maré, onde a educação é muito precária. No Brasil, a desigualdade se encontra até no acesso à internet.
Abismo digital persiste
Segundo os dados das pesquisas do Cetic.br, entre as pessoas que nunca usaram a internet ou não fizeram uso nos três meses anteriores à entrevista, 50,9% tinham renda de até um salário mínimo. Sobre o uso, entre os que não fizeram nenhuma das práticas registradas pela pesquisa (jogos on-line, música on-line, vídeos, baixar filmes, músicas e jogos), 39,2% pertenciam a essa mesma faixa de renda.
— O uso da internet reflete as desigualdades sociais — afirma o pesquisador Frederico Augusto Barbosa da Silva, um dos autores do estudo do Ipea. — Em linhas gerais, quanto maior a renda, maior a probabilidade de se encontrar um usuário mais intenso da rede.
Rodrigo Baggio, presidente da ONG Recode, defende que é preciso pensar em políticas públicas hoje para que os jovens mais pobres tenham acesso ao mercado de trabalho do futuro. O abismo digital que persiste tende a reforçar a desigualdade social em um mundo que caminha para a quarta revolução industrial.
— Um estudo da UnB aponta que mais da metade dos empregos formais do país podem ser substituídos por softwares e robôs. São 30 milhões de vagas que deixarão de existir — alerta Baggio.
O Google tem uma equipe dedicada a pensar em como usar a tecnologia para melhorar o acesso e a experiência de uso da internet pela população mais pobre. David Shapiro, diretor de Negócios e Operações da iniciativa Next Billion Users, explica que o foco está em países em desenvolvimento, incluindo Brasil e Índia.
O Brasil inspirou um dos projetos. Há alguns anos, pesquisadores perceberam que o brasileiro sofria com o espaço de armazenamento dos smartphones. Quando ia tirar uma foto, precisava apagar outra para liberar memória.
— Por que o telefone não pode liberar espaço automaticamente? Então criamos o Files, um gerenciador que indica quais arquivos estão seguros na nuvem e podem ser deletados — diz Josh Woodward, diretor do Google Station.
Agora, os pesquisadores do Next Billion Users se voltam para quem nunca teve celular.
— Em Puebla, no México, mostrei a algumas pessoas vários ícones comuns. O símbolo de Wi-Fi, o ícone de menu, e elas não tinham a menor ideia do que eram — diz Woodward. — Quando pensamos em design, precisamos pensar nessas pessoas que nunca acessaram a internet.
O GLOBO

Nenhum comentário: