sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

‘Casamento homoafetivo é um direito adquirido’, diz futura ministra de Direitos Humanos, vítima de violência sexual aos 6 anos


A futura ministra de Direitos Humanos, Damares Alves , tem uma filha indígena, é pastora da Igreja Quadrangular e trabalha como assessora no Congresso Nacional há mais de 20 anos, sempre próxima da bancada evangélica.

Damares foi anunciada nesta quinta-feira como ministra da nova pasta criada: Mulher, Família e Direitos Humanos, que também será responsável pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Em entrevista ao GLOBO, ela afirmou que homens e mulheres não são iguais, que é preciso inserir transexuais no mercado de trabalho e que o casamento homoafetivo é um direito adquirido. Afirmou também que é defensora dos indígenas.
Em uma visita ao gabinete de transição na semana passada, Damares foi convidada a assumir um órgão de Direitos Humanos e Mulheres, que ainda não se sabia se seria ou não ministério. Ela aceitou o convite após conversar com seu chefe, o senador Magno Malta (PR-ES).
Como se deu sua militância pelos direitos humanos?
São anos na estrada na defesa da infância. A cada momento da minha vida, encontrei um grupo de crianças mais vulnerável que o outro. Nasci no Paraná, mas me criei entre Sergipe e Bahia. Em Aracaju, comecei com meninos e meninas de rua, por volta de 1984. Fui professora desde muito cedo. Estava em sala de aula há quinze anos, já, e trabalhava com a primeira infância. Às vezes o aluno não vinha porque algo tinha acontecido. “Meu irmão morreu”, “meu irmão está preso”. Eram meninos que estavam na rua. Militei algum tempo no movimento Meninos de Rua, atendendo meninos que estavam se prostituindo, cheirando cola.
E depois?
Fui embora para São Paulo para fazer (faculdade de) direito e lá eu continuei trabalhando, mas mais focada no menor dependente químico e nas mulheres. No final de 1987, fui trabalhar com mulheres camponesas e pescadoras. Tenho uma história de muita intimidade e identificação com a história delas. São mulheres sofridas, que apanharam de maridos, foram agredidas na infância, trabalharam desde cedo.
Como foi a agressão que a senhora sofreu na infância?
Sofri uma violência sexual aos seis anos. A partir daí, tão logo comecei a trabalhar, decidi defender crianças, proteger os vulneráveis. Sou educadora e pastora, em 1991 me tornei advogada e passei a usar o direito para buscar a proteção de direitos. Essa foi a minha história até vir para o Congresso Nacional, onde eu vim fazer essa abordagem nos bastidores com os parlamentares. Eu ia para a rua brigar pelos meninos, mas ainda não tínhamos o Estatuto da Criança e do Adolescente. Então eu ajudei a construir e aperfeiçoar essa legislação. Achei que o Legislativo poderia ser uma seara em que eu pudesse ajudar a construir leis protetivas, leis punitivas com quem agride. No Legislativo, encontrei as crianças indígenas, que são uma causa especial para mim, assim como as crianças ciganas e os povos tradicionais.
De que igreja a senhora é pastora?
Sou pastora da Igreja Quadrangular. Meu pai é pastor Quadrangular e minha igreja me ordenou pastora. Eu sou obreira licenciada, o que os fiéis chamam de pastora. Mas hoje estou na Igreja Batista Lagoinha. É uma igreja com um trabalho social incrível, no Brasil e no mundo, e pela identificação com o projeto, acabei ficando com essa igreja.
Qual sua principal bandeira para o ministério?
Com toda a minha militância, a gente percebe que, na sociedade, temos os “invisíveis”. Eu gostaria muito de trazer para o protagonismo dessa história de direitos humanos os invisíveis, que são os ciganos, a mulher ribeirinha, a mulher seringueira, cortadora de cana, que cata siri, que quebra coco, que colhe açaí. Essas mulheres de mãos calejadas não estão no protagonismo e as políticas públicas nem sempre chegam nelas. Temos mais de um milhão no ciganos no Brasil. Esse povo é lindo, é incrível, e está invisível, sofre preconceito e discriminação.
E os transexuais?
É essencial ter um diálogo com a travesti que está na rua, que está se prostituindo. Será que está lá por opção, ou porque não ingressam no mercado de trabalho? Gostaria muito de conversar sobre isso. Tenho encontrado travestis dotados de uma inteligência extraordinária e com o corpo machucado. O corpo na rua sendo machucado. Será que não está na hora de a gente começar a ver esse ser, que foi por tantos anos discriminado, e se perguntar: por que para o travesti sobra só a prostituição? Por que só esse caminho, por que não trazer eles para as universidades?
A senhora é a favor da legalização da prostituição?
Não. Prostituição não dignifica ninguém. Não tenho nenhum problema com a prostituta, mas quem consome mulher na prostituição pra mim é predador. Então eu quero muito pensar nessa prostituta como um ser humano que precisa de dignidade. Elas sofrem, apanham na rua. Não tem glamour, tem dor e sofrimento. Nem todas as mulheres são “Uma Linda Mulher”. Estou na rua com elas eu sei como é chorar com elas, levar sopa, cobertor. Meu sonho é um mundo em que ninguém precisasse vender o corpo, que a mulher tivesse o corpo respeitado.
Qual sua opinião sobre a discussão da identidade de gênero?
Eu tenho uma posição muito forte em relação à teoria de gênero. É uma teoria furada, sem nenhuma comprovação científica. Nós temos que lutar pela igualdade de direitos civis entre homens e mulheres. Eu não quero nenhuma mulher ganhando menos que um homem ou sendo preterida por ser mulher, ou sendo enterrada viva por ser mulher, o que acontece no Brasil. Mas homens e mulheres não são iguais. E isso eu tenho certeza. Mulher é mulher, homem é homem. É muito ruim dizer que somos iguais, porque eu não consigo carregar um saco de cimento nas costas, e o homem que está do meu lado não consegue fazer todas as coisas que eu faço ao mesmo tempo.
A senhora já está enfrentando críticas por ter dito que a mulher nasceu para ser mãe.
Mas a mulher nasceu para ser mãe, porque nasceu com útero. Nesse planeta Terra, a fêmea nasce com útero para gerar. Então eu não menti. A mulher nasce para ser mãe. Se ela não quer ser mãe, é uma opção dela, mas a mulher nasceu, sim, para ser mãe. Isso é tão instintivo, da natureza humana, que mesmo aquelas que não querem ser mães vão dizer “puxa, eu podia ter sido mãe”. Então a veia salta dizendo que é direito da mulher não querer ser mãe. Eu concordo, mas é uma luta contra a natureza humana. Quem manda são as regras biológicas, que nos fizeram com peito, útero, ovário e trompas, para gerar.
Então o papel da mulher é procriar, e do homem é ganhar o pão?
É raça humana. O homem é protetor, provedor, cuidador. Mas a raça humana mudou. Então a gente briga com a natureza. A civilização está mudando e a gente tem que ir para o mercado de trabalho, mas eu gostaria de ter um mundo em que a mulher só trabalhasse se quisesse. Mas não temos essa opção hoje, precisamos trabalhar para sobreviver. Algumas têm prazer em trabalhar, eu, por exemplo. Eu sou privilegiada, porque sou muito feliz com o que eu faço. Mas nem todos são felizes.
Isso não vale para mulheres e homens?
Mulheres e homens. Mas entendo que o ideal para a mulher seria, quando tiver um filho, escolher se quer ficar quatro anos em casa com o bebê. Mas não tem como. Somos muito cobradas, a competição no mercado de trabalho é muito grande. Precisamos ajudar com o sustento, ajudar o marido. Somos, em maioria, chefes de família. Vejo mães de licença-maternidade agoniadas com o que está acontecendo no trabalho. É angustiante.
As mulheres sofrem discriminação?
Sim. O Brasil é um país que a mulher sofre, a cada 11 minutos uma mulher é estuprada, a cada 7 uma sofre violência doméstica, e detalhe, esses são os números oficiais. E a mulher que não denuncia, que não fala? É uma nação que machuca as mulheres e eu sonho com essa mudança.
Como combater a violência contra a mulher?
Nós vamos ter que fazer uma revolução cultural. Todos os meninos vão ter que entregar flores para as meninas nas escolas, para entender que nós não somos iguais. Quando a teoria de gênero vai para a sala de aula e diz que todos são iguais e que não tem diferença entre menino e menina, as meninas podem levar porrada, porque são iguais aos meninos. Somos frágeis, mas somos muito especiais, fazemos coisas que eles não conseguem fazer. Vamos proteger as crianças, as grávidas, e mostrar que uma nação que teve uma mulher presidente da República tem tudo para ser o melhor país do mundo para mulheres.
Qual sua posição sobre o casamento homoafetivo?
Isso é uma questão que já está praticamente definida no Brasil. É uma conquista deles. Direitos conquistados não se discute mais. Então, pra mim, é uma questão vencida, tanto é que o movimento gay nem tem mais isso como pauta, é uma questão superada, um direito civil garantido.
Os ministros do governo Bolsonaro aparentemente não querem ficar com a Funai. A senhora abrigaria o órgão?
Eu brigaria pela Funai. Índio não é um problema. Funai não é um problema, o problema é a forma como nós lidamos com a política indigenista. Me incomoda a proposta de colocar os índios no ministério da Agricultura. Metade dos nossos índios já estão em área urbana. O que o ministério da Agricultura vai fazer com o índio universitário? Foge da atribuição do ministério da Agricultura. Nossos índios já estão com internet, têm senso crítico, participam. Então a gente tem que preparar os indígenas para um novo momento de interação. Os técnicos da Agricultura não teriam essa habilidade. O presidente Bolsonaro está falando de uma forma muito bela, quando diz que índio não é bicho.
(Foi anunciado que a Funai será, de fato, abrigada no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos.)
A senhora é a favor de uma flexibilização nas regras das reservas indígenas?
O problema é que quando se fala em índio só se pensa em terra. Não é por aí. Mas sim, sou a favor do índio poder ter um manejo sustentável em suas terras, existem excelentes programas de criação de peixe, de camarão. Para sua sobrevivência, sim. Outra questão é a mineração em áreas indígenas, está sendo discutido no Congresso Nacional. Mas não aceito demarcar uma área enorme e deixar o índio solto, sozinho, sem ajuda para sustento, sem fiscalização. Quem quer ficar no mato, fica, quem quer ficar na cidade, pode ficar. Mas se me perguntar de que lado eu estou, eu estarei sempre do lado do índio. Sempre.
Sua filha é indígena?
Minha filha é índia, do povo Kamayurá, e está comigo desde os seis anos. É uma linda moça, uma princesa que está se preparando para o curso superior. Tem 20 anos hoje. Se tivesse nascido do meu útero, não era tão parecida comigo. Sempre recebo a família biológica dela em Brasília, nós vivemos bem e ela mantém a identidade cultural dela, se pinta, dança, canta, come formiga. Sou divorciada. Está indo assumir o ministério uma nova configuração de família. Sou uma mulher divorciada, mãe de uma filha adotiva. Essas famílias existem e estão aí no Brasil.
O Globo

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